quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

A Felicidade vem do céu



Romance de autoria de Ernestina Euphrasio Campestre
Registrados direitos autorais no 5o. Tabelionato de Notas de São Paulo
Em 20 de Abril de 1949
Digitalizando em Janeiro de 2012

Mulher... Honesta?



Romance escrito por :
Ernestina Euphrasio Campestre em 1949
Em Digitalização em Janiero de 2012


segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Fim de semana





 


            A noite anterior não havia sido fácil. O esperado domingo de descanso chegava cheio de cansaço. O pé d’água da madrugada de sábado havia dado trabalho. Muitos não dormiram com medo que o teto caísse, muitos dormiram no vizinho, porque o teto caiu e muitos noite a fora, puxaram água de dentro dos barracos.
            Escorregando lama abaixo e se apoiando uma a outra, as duas jovens vizinhas, voltando da feira conversavam:
            -Como é Sonia? Vai contar porque está com esta cara feia?
            -É o mesmo problema de sempre...
            -Sua mãe está grávida?
            -É isso aí...
            -Ei! Que barulho é esse?
            -Tu ainda tem dúvida? Olha o povão correndo!
            -É bala! Tiroteio feio! Corre!
Era até cômico ver aquelas portas se fechando. Aquelas portas de Madeirit, mal protegiam da chuva e do vento. Agora estavam sendo fechadas, para servir de escudo contra um terrível tiroteio.
            -O Baby desta vez, bateu com a vara na caixa de marimbondos!
            - O que foi que ele fez?
            -Matou um sargento!
            Era uma vida perigosa, mas o pagamento do perigo eram essas coisas de “herói” que aconteciam. Trabalhando na Lorenzetti, ganhando um salário mínimo, levando marmita, ela jamais seroa temido, respeitado, olhado, visto, manchete de Jornal!
            Em circunstâncias normais, os policiais jamais abririam fogo assim, entre inocentes, mas desta vez o marginal Baby, foi longe demais! Agora era tudo ou nada. As portas de Madeirit é que se cuidem!
            Foi rápido. Encurralado, subiu a imensa e absurda escada que liga o Madalena ao Elba, bairros da periferia de São Paulo. Ali foi baleado. Terminou a fama e o respeito. Com os olhos cheios de lágrimas de uma dor indescritível, agora via os vultos das pessoas conhecidas se aproximando para vê-lo ensanguentado. A última informação que o seu sentido recebeu foi um grito de mulher. Seria sua mãe? Que importa? Há muito tempo ele já não era mais filho de ninguém, se não da vida que escolhera. Não, o grito não era da mãe do fugitivo. Esta, ao ouvir de um moleque, tagarela, banguela, barrigudo, descalço e sem camisa, que seu filho estava morrendo, nem piscou. Sua única reação foi bater com um pouco mais de força a roupa molhada contra a pedra do tanque.
            O grito vinha de um casebre. Destes que não dá pra entender como é que existem. Duas estacas fincadas na terra, e outras duas, como pernas de girafa, ficavam dentro do rio. A agua suja e fétida passava por debaixo. Nas enchentes todos os ratos, camundongos e ratazanas do rio, subiam pelas pernas de girafa e passavam a noite, junto com a Rita, a mulher que agora gritava: - Por que meu Deus? Por quê?
            Ninguém entendia nada. Será que ela amava tanto assim aquele aventureiro? Afinal, era apenas mais um, entre tantos que tombavam ali continuamente. Somente quando a chamada Rita ratoeira, afastou do seu peito, a criança que trazia nos braços, é que todos entenderam seu pranto. Seu casebre, nem porta de Madeirit tinha. Eram chapas de lata enferrujada, presas com velhas câmeras de bicicleta e, dentre as muitas balas do tiroteio, uma matou seu filho no berço.
            Aquele tiroteio foi como um furacão, que passando arrancou a paz de muitos, com raiz e tudo.
            Os tiros já haviam parado, mas não sei de onde surgiu o Carlão, com o peito peludo, sem camisa, puxando a Rosinha pela mão e dizendo:
            -Corra!  Entra aqui, que vai começar de novo!
            Apavorada a menina de 12 anos entra naquele barraco escuro, cheio de liquidificadores, ventiladores, máquinas de escrever, relógios de ponto...
            -Então é verdade – pensa a menina – O Carlão é ladrão
            Mas quando ela pensou em sair dali já era tarde. Com a desculpa de protegê-la das balas, ele a deitou no chão. Enquanto a atenção de todos, estava voltada pra o marginal ensanguentado, Rosinha perdia a virgindade.
            O João da Sanfona, comerciante que vendendo pinga para jogadores de sinuca, abasteceu um mini mercado comprou um caminhão e um carro de passeio, por certo lucraria até com o tiroteio, pois seu caminhão seria alugado para levar embora a mudança dos novatos apavorados e para conduzir a vizinhança ao cemitério.
            Quando o rádio, o jornal e a TV, fizeram a cobertura do fim da vida do marginal, apareceram inúmeras mãezinhas solteiras, atribuindo ao falecido, a responsabilidade do que lhes crescia no ventre. Provavelmente mentiam, mas era melhor serem consideradas vítimas de um famoso morto mal feitor do que simplesmente serem chamadas de vadias.
            Enquanto o João da Sanfona limpava o caminhão, para arrastar povo para o cemitério, dentro dos casebres, atrás de barrancos, ocultos em buracos, diante de balcões, jovens de 13 a 29 anos, rodavam seus revólveres, exibindo sua perícia, treinando sua malícia. O pensamento de todos era o mesmo: Ser o sucessor daquele que havia se transformado de marmiteiro em manchete do “Noticias populares”.
            Rosinha pensou em chegar em casa chorando, se atirar nos braços da mãe e contar ocorrido, mas a meio metro da porta, ouvir o pai que gritava com a irmã mais velha:
- Se você se perder com esse seu namoradinho da cidade, eu acabo com a sua vida! O que é que um moço estudado, professor de “tilógrafo”, vai querer com você?  Abre o olho! Abre o olho!
            Rosinha então, enxugando as lágrimas, soltndo a blusa grande de lã sobre a saia suja, começou a cantarolar uma música qualquer. Entrou em casa e disse apenas: - Oi!
            Ela já estava para se considerar uma excelente atriz, por conseguir disfarçar tão bem, um problema como aquele. Quando ao olhar para a porta que acabara de atravessar, seu corpo estremeceu. Carlão o seu agressor estava ali, pedindo licença para entrar. Em sua inocência de menina ela sorri e pensa:
-Ele não é tão cafajeste como pensei, deve ter vindo falar com meu pai, me pedir em casamento.
-Como vai seu Pedro? Dona Clara? Vim ver se todos estão bem. Afinal o queima queima foi quase na porta de vocês....
-Tudo bem Carlão – diz o pai – entra moço, chega mais, senta,
-Dona Clara – continuava o cínico – é o fim do mundo a violência aqui tá de mais...
-É moço, e disto vai para pior...
            Carlão agora fulminava a pequena Rosinha com um olhar simples de entender. A intenção dele ao estar ali, não era outra senão de intimidar a menina, para que não tivesse coragem de acusá-lo. Sem piscar, e encarando-a de maneira a meter medo ele prosseguia:
-Vocês ouviram o rádio esta semana?
-O que? Do metalúrgico que está fazendo greve em São Bernardo? – Pergunta o pai
-Não, de um desgraçado, que depois de fazer mal para uma criança, ainda teve a coragem de ir à casa dos pais dela, para ameaçar matar se contasse para alguém?
-Cruz credo, Ave Maria – disse dona Clara – Deixando cair as latas vazias de marmelada que serviam de prato.
-Tá escutando bem dona Rosinha? Ouviu bem dona Sonia Tão vendo? Se cuidem! Se cuidem! – Observava o sábio pai.
E todos comentavam aquele caso, com a mesma simplicidade, com que comentavam todos os outros, que diariamente lhes chegava ao ouvido. Sem jamais desconfiarem, que a vítima ali tratada era sua própria filha, para a qual agora diziam:
-Anda Rosinha, faz um café pra servir pro Carlão, “eita” menina mole!
                        Ao chegar a casa e encontrar a porta de lata aberta, pendurada pelas dobradiças de câmeras de pneu de bicicleta, a bacia de roupa torcida no meio do quintal, o poço aberto, as panelas com a comida feita, visitadas pelos ratos, o primeiro pensamento do Jair da Rita Ratoeira, foi o de dar uma bronca danada. Ao olhar para a porta, ali estava aquela mulherada, contando aquela história atrapalhada, que o Baby e o bebe haviam morrido a bala...
-Como e que é? O que tem meu filho a ver com Baby? Aquela desgraçada da Rita "tava" andando com bandido?
-Não! o bebe “tava” no berço!
-O Raio! Então o bandido “tava” com ela aqui no barraco?
-Não seu Jair, o bandido morreu no escadão...
-Da licença seu Jair – Disse Firmino – Se for por essa mulherada, tu nunca vai entender nada. Foi bala fugida de tiroteio lá de fora que matou seu filho no berço!
-E a Rita?
-Ela tá bem, foi na delegacia...
-Calma seu Jair, não fica assim...
-Cruz credo! Ave Maria! Olha que olhar parado! Só falta ele ficar louco!
            Jair pensava: “Podia ter morrido a Rita também, assim eu “tava” livre daquela fedida, comprava umas folhas novas de Madeirit, dava uma arrumada no barraco e me juntava de vez com a Zulmira”.
            Sem entender o silêncio trágico, a pequena multidão se dispersou. O Franzino Jair, de olhos fundos, cabelo espigado, sujo de terra, poceiro, deu um pontapé na porta, se jogou na cama, se chorou, só Deus sabe.
            O candidato mais votado, para a sucessão do marginal, era um rapaz feio, apelidado de “Bonito”, mas há meses ninguém sabia dele.
-Capitão Bruno? O rádio da viatura está avisando que o “Bonito” acaba de entrar no bairro.
-Ótimo! Mais um presunto!
-Cruz credo! Ave Maria! Três mortes no mesmo dia
            O povo corre: Firmino, a mãe do Baby, João da Sanfona, Jair, Clara, o menino descalço, Pedro, Rita, Sonia, Rosinha, Carlão, as mãezinhas solteiras, e até o professor de datilografia!
-Capitão Bruno! O “Bonito” não vem sozinho! Vem em Bando!
-É bando conhecido?
-Não!
            Viaturas, guardas a seus postos, armas em punho. O “Bonito” e seu bando surgem na esquina. Não sai nenhum tiro.
            -Como o “Bonito” está bonito!!!
            De terno e gravata, bíblia na mão, acompanhado pelos “irmãos”, convertido ao evangelho de Jesus.

Fim
Tercival - 1979